Eu só melhoro com uma benzetacil, todo ano é isso!

0
169
Publicidade

Aprendemos bastante da última vez, mas vamos pro meu consultório ouvir a Dona Marilene. Ela parece um pouco irritada, teve que esperar 2h para ser atendida, passou pela enfermeira, pela recepção, pela enfermagem, vai se atrasar para o trabalho, teve que explicar o óbvio para pelo menos duas pessoas antes de chegar na minha frente e ainda pior: para dona Marilene a solução de seus problemas é óbvia, foi assim a vida toda, desde quando tinha 12 anos, sempre na mesma época do ano, e até 2010 ela conseguia resolver por ela mesmo o problema, mas o maldito governo proibiu a venda de antibióticos sem receita, ela agora está na minha frente e declara: eu só melhoro com uma benzetacil, todo ano é isso, minha garganta começa a arranhar e tenho que tomar e ai melhoro, nem adianta me dar outra coisa.
Dona Marilene não quer um diagnóstico do que ela tem, ela quer um antibiótico, o senhor Fulano não quer saber o que o filho tem, ele quer um antibiótico para o filho, antes que piore, pois é grave, pois a febre vai e volta, pois o filho está sofrendo, pois só receitam remédio para febre e lavar o nariz. Dr. Ciclano está no plantão atendendo 10 pacientes por hora, ele não tem tempo para explicar, ele não tem tempo para barraco, faz 20 horas que está trabalhando, ele precisa ir no banheiro, ele quer ser conhecido por aquele que resolve.
Dona Marilene, Senhor Fulano, Dr. Ciclano e eu e você vamos nos encontrar muito ainda nos serviços de saúde e somos todos culpados de um crime terrível, estamos criando bactérias resistentes aos antibióticos. Temos casos de bactérias resistentes a quase todas as nossas melhores armas e com a pandemia e o uso indiscriminado de antibióticos isso piorou.
Então vou contar como tudo começou. Lá em 1928, um médico chamado Alexander Fleming descobriu o antibiótico Penicilina e começou a curar muita gente que antes só dependia da sorte, e os cientistas que vieram depois dele criaram outros compostos que combatiam outras bactérias e tudo parecia muito bem, criou-se uma aura mágica dessas substâncias, pela primeira vez a humanidade não estava indefesa. Só que nosso inimigo não parou e evoluiu, começou a se adaptar e a cada vez que inventamos novas armas, eles criaram novas adaptações. Em torno de 2004 começamos a perceber que o inimigo estava se adaptando mais rápido que nossas armas e isso era um problema. Hoje custa 39 mil vidas americanas e 20 bilhões ao ano a mais para eles, no mundo são 700mil mortes por ano por infecção resistentes e em 2050 pode chegar a 10 milhões de pessoas se não fizermos nada. O setor tem problemas econômicos também, é caro e pouco lucrativo criar novos antibióticos, isso os governos estão tomando providências.
Esse aumento da resistência ocorre não só pela capacidade de adaptação dos microrganismos, é nosso comportamento que força essas adaptações. Quando usamos antibióticos para doenças não bacterianas, matamos as sensíveis que vivem em nós e deixamos lá as resistentes que vão se multiplicar, algumas bactérias que vivem em nós precisam de condições específicas para causar doenças, mas sempre estão lá. Ao usar um antibiótico novo, e que pega muitas bactérias e com um mecanismo especial, para coisas banais e/ou com opções mais básicas, tão boas quanto e que não geram tanta resistência, ao fazer isso também podemos selecionar bactérias e quando realmente precisarmos desse antibiótico ele não será mais efetivo.
E o que podemos fazer? Deixar de cometer nossos crimes. Chamamos isso de uso racional de antimicrobianos. O médico deve tentar ao máximo fazer um diagnóstico mais preciso, explicar a doença ou suspeitas e como elas evoluem, tentar entender e acolher as angústias dos familiares e do paciente, não tentar apenas agradar ou se livrar rapidamente do paciente, mas dar o tratamento mais adequado, também pedir o retorno se não melhora. Também o médico deve usar o antibiótico mais adequado se necessário e não o mais caro, o que pega mais bactérias ou que está na moda, a escolha deve ser baseada no local que atende, na suspeita e retirar quando necessário. Ao paciente cabe entender que nem sempre o antibiótico é solução dos problemas e que seu uso é específico, que nem tudo que é grave precisa dele, que certas doenças só precisam de tempo, que nem sempre o que parece que funciona, funciona de verdade e principalmente dialogar e explicar da melhor forma possível o que sente e quais as dúvidas que tem. A comunicação e a informação são a chave para reduzirmos esse problema, tanto para médicos quanto para pacientes, precisamos parar de cometer esses crimes contra o nosso futuro.

Publicidade -
Ponta 1